27 abril 2012

dos sinais

Alejandro Toledo é um bem sucedido criativo de uma agência espanhola de publicidade. Há dias, caminhava em Madrid quando viu um antigo companheiro de profissão. Cumprimentaram-se e ele percebeu que o outro ia buscar comida a uma instituição de solidariedade. Estou a contar-vos isto que li num jornal espanhol e não me sai da cabeça a frase de campanha de Sarkozy pedindo que votem nele para evitar uma crise como a da Espanha. E Mario Monti repetindo a cantilena. E a justa cólera dos espanhóis, Rajoy pedindo prudência nas declarações. Rajoy prudente, engolindo a cólera, engolindo a vontade de desatar o latim. Mas Toledo percebeu que o outro, ainda ontem, tal como ele, um publicitário bem sucedido, ia agora à sopa dos pobres. Viu que o outro entrou num refeitório social e saiu com a sua ração de comida. Por dentro, a dignidade amarfanhada. Por fora, a roupa cuidada, disfarçando a condição de novo pobre. Pode acontecer contigo, comigo. Já amanhã.
Alejandro Toledo ficou muito impressionado, a tal ponto que decidiu fazer um spot televisivo para a Caritas, chamando a atenção para a importância do trabalho humanitário. O resultado foi um filme comovente. Teria custado 40 mil euros. Mas todos os que nele participaram o fizeram gratuitamente. O homem que representa o novo pobre de Madrid é um malabarista que Toledo encontrou na rua. A menina que faz de sua filha é a filha de Toledo, o autor da campanha.


A primeira cena mostra-nos uma rua movimentada, fim de dia. A cidade já iluminada, reflexos de luzes nos estabelecimentos. Um homem, ainda jovem, caminha com uma menina. Agora ela pára. Encosta a cara ao vidro da montra. Tem um gorro roxo, uma mochila. Não larga um urso de peluche que aperta contra o peito.

O homem puxa uma enorme mala de viagem com rodas. Há uma loja de frutas. Atravessam, agora, um centro comercial. A menina chora junto a uma das montras. Depois senta-se no passeio. O pai incita-a a que prossiga. Estugam o passo, puxando a grande mala. O rosto do homem cruza-se com o de uma deusa da publicidade, num cartaz. Escureceu. É a menina que puxa agora a grande mala, como se fosse um cão pela trela. A casa pela trela. Há grupos de sem abrigo estendendo os seus cartões. O homem e a menina hão-de fazer o mesmo, adiante.

Agora amanheceu. Caminham de novo pelas ruas, entram na casa onde outros esperam não se sabe o quê. Podia ser uma sala de espera de um hospital. Sentam-se, o homem coloca uns sacos de plástico na cadeira ao lado. A menina não larga o urso de peluche. A fila começa a mover-se. Mulheres de bata branca estendem aos da fila embalagens com alimentos.

Saem para a rua. Agora estão sentados num banco de jardim. O homem abre a embalagem. É sopa, ainda fumegante. Ele dá sopa à menina. Talvez conte uma história enquanto leva a colher de sopa à boca da filha. Há um homem que toca acordeon. O homem e a filha sorriem. Abraçam-se. A menina corre para um escorrega.

...

Cala-te, Sarkozy. Um pouco de pudor. Verguenza.
 
 

09 abril 2012

Pessoa e Caeiro :)

"Não sabia que Caeiro fosse o senhor, disse Fernando Pessoa, e fez um ligeiro cumprimento com a cabeça. Alberto Caeiro fez-lhe um gesto fatigado para entrar. Entre, caro Pessoa, convoquei-o aqui porque queria que soubesse a verdade. Entretanto a tia-avó chegou com uma bandeja com chá e bolinhos. Caeiro e Pessoa serviram-se e pegaram nas chávenas. Pessoa lembrou-se de não espetar o dedo mindinho, porque não era elegante. Ajeitou a gola do seu fatinho à marinheiro e acendeu um cigarro. O senhor é o meu mestre, disse. Caeiro suspirou, e depois sorriu. É uma longa história, disse, mas é inútil contar-lha de fio a pavio, você é inteligente e compreenderá mesmo se eu saltar algumas passagens. Saiba apenas isto, que eu sou você. Explique-se melhor, disse Pessoa. Sou a sua parte mais profunda, disse Caeiro, a sua parte mais obscura. Por isso sou o seu mestre. Um campanário, na aldeia vizinha, deu as horas. E eu, o que devo fazer?, perguntou Pessoa. Deve seguir a minha voz, disse Caeiro, ouvir-me-á na vigília e no sono, às vezes hei-de perturbá-lo, outras vezes não quererá ouvir-me. Mas terá de escutar-me, deverá ter a coragem de escutar esta voz, se quer ser um grande poeta. Fá-lo-ei, disse Pessoa, prometo-lhe. Levantou-se e despediu-se. A tipóia esperava-o à porta. Agora torna- ra-se de novo adulto e tinha-lhe crescido o bigode. Para onde quer que o leve?, perguntou o cocheiro. Leve-me para o fim do sonho, disse Pessoa, hoje é o dia triunfal da minha vida. Era o dia oito de Março, e pela janela de Pessoa entrava um sol tímido."
em "Sonhos de Sonhos", de Antonio Tabucchi

...velhas trapaças...