Será possível um corpo ter muitos rostos? E um rosto deixar indeléveis vestígios na passagem por muitos corpos? (...) Afinal não passo de um depredador da minha própria noite. Sou uma nódoa de sangue e de esperma manchando a noite alheia. (...) O medo (...) - o medo, sossego-o eu ao devorar aquele que seduzi. Depois, abandono-o à iminência da minha fuga. Sempre fiz isto, não sei porquê. Largo-o ao seu próprio sofrimento e vou, silente pelas ruas, procurar os sinais da paixão. E naquele que seduzir em seguida amarei o outro que, irremediavelmente presente, acabei de perder. Assim, sucessivamente, até aos confins dos meus dias... (...) Nunca consegui misturar-me nos outros corpos, estão demasiado vivos, doem-me quando lhes toco. Observo-os, uso-os, e no entanto mantêm-se tão distantes. Se calhar envelheci mais depressa ao tocá-los. A dor vai sulcando o rosto e comprimindo o coração, não sei... talvez seja apenas o receio da noite com os seus desmedidos poços de cinza. (...) Agora sou espectador daqueles que são incapazes de partilhar comigo o que possuem. No fundo estou-me nas tintas para isto tudo. Tornei-me ladrão. Roubo-lhes um beijo, uma erecção, um gemido de esperma, uma carícia... roubou-lhes tudo o que posso e estou-me nas tintas... é isso mesmo, estou-me nas tintas para o que pensam. Nada tenho a perder, a sedução é uma das artes do ladrão, raramento me deixo roubar. Mas que te importa tudo isto, Beno? Sossega, sossega porque o mundo está sujo de indiferença...
in Lunário
Al Berto
Nenhum comentário:
Postar um comentário