24 novembro 2013

na outra margem da memória


Sempre que penso no meu amor por alguém, costumo traçar raios que esse amor emite – o meu coração, suave fulcro de um sentimento pessoal – até pontos do universo monstruosamente afastados. Algo me força a medir o sentimento íntimo do meu amor, opondo-o a inimagináveis e incalculáveis coisas, como o comportamento de nebulae (cujo extremo afastamento me parece uma forma de loucura), as armadilhas terríveis da eternidade, o incognoscível além-desconhecido, o abandono, o frio, as involuções e interpenetrações nauseantes de espaço e tempo. É pernicioso hábito, mas nada posso fazer. Podemos compará-lo ao latejar irreprimível da língua daquele insone que verifica na noite da boca a lasca de um dente, e embora se magoe persiste. (…) Não há remedio; tenho que saber onde estou, onde estás tu e onde está o meu filho. Quando esta lenta e silenciosa exposição de amor se dá em mim, abrindo as liquefeitas franjas e esmagando-me com a sensação de algo que é muito mais amplo, muito mais perdurável e poderoso do que a acumulação de matéria ou energia num qualquer e imaginável cosmo, nessa altura o meu espírito só tem que beliscar-me para ver se está realmente acordado. Preciso de fazer um inventário rápido do universo, como o homem que sonha e tentar explicar o absurdo da sua situação confirmando que sonha. Preciso de fazer participar na minha emoção o espaço e o tempo inteiros para iludir, assim, a sua mortalidade e ajudar-me na luta contra degradação total, o ridículo e o horror extremos de ter engendrado numa existência finita um infinito de sensação e pensamento.

 

Apesar disso a esmorecer, e também, o resto a ir ficando escuro; mas logo acima do horizonte, num espaço claro de cor turquesa por baixo de um estrato negro, os meus olhos depararam com um espetáculo que só os tolos tomariam por supérfluo neste ou noutro pôr-de-sol. Ocupava uma bastante reduzida porção do enorme céu e tinha a nitidez peculiar das coisas vistas com um telescópio ao contrário. Lá me esperava uma família de serenas nuvens em miniatura, acumulação de volutas brilhantes, anacrónicas no seu aveludado e extremamente longínquas; remotas mas perfeitas em todos os pormenores; fantasticamente reduzidas mas de contorno impecável; o meu amanhã maravilhoso pronto a ser entregue às minhas mãos.
Nabokov
[das mais belas descrições que li - sem dúvida a comprar para reler]

Um comentário:

Ana disse...

bem me parecia familiar ;)

...velhas trapaças...