22 setembro 2014

das palavras bonitas, por Júlio Machado Vaz

Meu Pai chegava e preparava o terreno - "Maria, fiz uma pequena asneira". (E eu sabia que mais um copo se preparava para habitar a cristaleira da sala de jantar.) Ralhete para salvar a face, por ele já beijada. Não era um connaisseur e o dinheiro não abundava, mas meu Pai colhia-me pelo braço, encanto dividido com o filho - "veja como são belos" -, às cavalitas de palavra que o puto vasculhou no dicionário, "irisados". Sentávamo-nos à mesa, eu com imponente Avó por par, ele chamava-lhe a rainha mãe e forçoso é admitir que se comportava como tal. De vez em quando lançava olhar satisfeito à última aquisição, aprumada entre hóspedes mais antigos, eu sabia que o comentário irónico não tardaria, "quando morrer, pode divertir-se a parti-los à fisga". Viveu o suficiente para mo repetir em voz baixa, para não chocar os futuros iconoclastas, "os nossos queridos meninos...". Eu mandava-o calar. A sua morte deixara a prateleira das inevitabilidades teóricas para habitar a dos lutos ao virar da esquina, talvez o silêncio a não despertasse.
Um desses copos janta comigo, torcendo o nariz à água desenxabida que lhe saiu na rifa, franzindo o sobrolho à confusão reinante na mesa, toalha feita de montes e vales de livros. Aceita-me por ser filho dele, mas sente a falta da sua elegância, do madrigal a minha Mãe, da animada tertúlia em que transformava cada refeição. Digo bem - refeição. Neste momento, sem pitada de auto-comiseração, alimento-me, ponto final. Para mim, uma refeição, sobretudo se familiar, é um ritual, uma celebração da tribo, que dela sai reforçada.
Compreendo a desilusão do copo, também eu preferiria erguê-lo em honra de meu Pai, num jantar de família à moda antiga. Assim, limito-me a assegurar-lhe que a sua beleza - irisada... - está a salvo de fisgas nervosas ou esquecimento no armário. Não preciso dos objectos para garantirem as memórias, mas aprecio a moldura física por eles proporcionada às imagens que esvoaçam dentro de mim e não desprezam a liberdade de uma alucinação.
Salut!
Júlio Machado Vaz

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