18 março 2008

... mas a vida está cheia do seu dom original e só espera de nós um pouco de atenção — ou não bem de atenção, não bem de atenção: um pouco de humildade, de uma íntima nudez. Eu o reconheço de novo, a esse dom nesta hora de chuva em que escrevo. Na rua deserta, ouço-a cair, expulsar da cidade os robots da ilusão, a grandes brados de um vento sideral. Dirás tu, meu amigo, ou alguém ao pé de ti, que são eles precisamente quem me constrói o mundo onde a «aparição» é possível, este mundo do conforto de um fogão que me aquece, de um telhado que me abriga. Também tenho a minha parte de robot e não a nego. Mas sei que há outra coisa à minha espera e que só depois dessa é que não há mais nenhuma. Tenho apenas esta vida para viver, e seria quase uma traição que eu faltasse à sua entrevista — essa entrevista combinada desde toda a eternidade. Por isso eu a procuro à minha vida, em toda a parte onde sei que ela me espera com uma palavra a dizer. Os robots da loucura é que a ignoram, porque o mundo deles é o da transacção imediata, um mundo táctil, de objectos, como o das crianças. Eu os vejo agora, passando desorientados pela rua abandonada, fugindo, espavoridos, à invasão do silêncio. De guarda-chuvas abertos, golas dos casacos erguidas, refugiam-se nas guaritas como animais acossados, aí ficam à espera de que o inimigo passe. Sim, eles conhecem a «fraternidade» e erguem-na como bandeira da sua redenção. Mas da fraternidade eles sabem apenas a fácil estratégia das palavras trocadas, dos braços que se apoiam uns nos outros contra o medo. Mas a profunda fraternidade — tu o saberás, meu amigo— não é uma cadeia de braços, mas uma comunhão do silêncio, uma comunhão do sangue. ...


Vergílio Ferreira, in Carta ao Futuro

Um comentário:

Ana disse...

tenho saudades de vergílio ferreira...

...velhas trapaças...